quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Melissa!

Muito tempo foi gasto na frente do espelho na produção de uma imagem que fizesse com que Melissa se sentisse segura. Ela não perde tempo com revistas de moda, não sabe quais as grifes do momento, não fica por aí perguntando para as pessoas se acham que ela está bonita. Melissa segue o que ela mesma chama de “padrão de beleza segundo Melissa” e quem não gostar que arrume outra coisa pra fazer.    

Mas dessa vez Melissa saiu de casa com uma vontade incrível de paquerar. A paquera tem algo magicamente fascinante. Você conhece uma pessoa, vê e conversa pela primeira vez, e tem o poder de fantasiar as coisas mais inusitadas, engraçadas, bonitas, simpáticas sobre esta pessoa. Não precisa se preocupar com defeitos, imperfeições. Não precisa ficar chateado com o que foi falado no último encontro, nem nada das complicações de um relacionamento afetivo. Você pode construir internamente toda uma imagem, da forma que quiser. Melissa sempre aproveita imensamente a paquera, pois sabe que a qualquer momento tudo pode ser desconstruído pela tediosa realidade.

Depois de algumas horas na balada, já cansada e com dor nos pés, Melissa estava um tanto frustrada por não ter ainda encontrado uma boa paquera. Repentinamente teve um momento de clareza. Como é patético uma garota ficar toda produzida e empinada à espera de um garoto que se aproxime para paquerar. Você sempre está na esperança de encontrar um príncipe e acaba beijando sapo. A vida é muito curta para ser perdida com protocolos. Melissa percebeu que tinha duas opções, ou ficava ali, esperando a boa vontade de um rapaz, esperando ser escolhida provavelmente por alguém não tão atraente, ou deixava de ser passiva, de forma que teria o poder de escolher alguém que realmente valesse a pena.

Depois de algumas horas, que talvez tenham sido minutos, tomando coragem, Melissa atravessou a pista para conversar com o garoto mais bonito que viu naquela noite. Ele era alto, com cabelos escuros, olhos castanho claro e barba mal feita. Muito simpático. A conversa durou horas. O desenrolar da paquera será propositalmente não narrado para que você possa usar sua imaginação como bem entender. Só posso dizer que Melissa, naquela noite, encontrou a paquera perfeita, até que foi estragada pela dura e cruel realidade.

domingo, 23 de outubro de 2011

Geração Mark Zuckerberg

De um lado da mesa dois homens. Ambos preenchem exatamente os requisitos de homens de negócio bem sucedidos. Cerca de 50 anos de idade, terno, linguagem formal. Do outro lado da mesa uma mulher. Ou talvez você prefira chamá-la de garota. Vinte-e-poucos anos, all-star, gírias. A conversa começa com “Eu gostaria de ouvir um pouco sobre sua experiência...”. Logo de cara você vai deduzir que a garota vai se sentir um peixe fora d’água, que está fazendo uma entrevista para conseguir seu primeiro emprego, talvez até chegue ao ponto de considerá-la ingênua por sua aparência. Se você pensou nisto sugiro continuar a leitura e digitar o nome desta história num site chamado Google.

A “garota” em questão não está sentada em uma cadeira qualquer, está sentada em cima de um patrimônio com muitos zeros à direita. Os dois homens estão se perguntando quem realmente é o peixe fora d’água. Certamente as horas que passaram na frente do espelho foram perdidas e a preocupação com cada detalhe da sua aparência não vão impressionar. Ela começou a conversa pedindo para saber um pouco da experiência dos homens que estão a sua frente, que se candidataram a um trabalho de consultoria.

Na geração dos avós da garota em questão haviam muitos obstáculos a serem transpostos. Tecnologia, invenções, impostos, ditadura. O mundo era governado por homens de meia idade engravatados e se você não era filho de um deputado, juiz ou coronel as oportunidades eram poucas. Na geração de seus pais as mulheres batalhavam por um lugar, por igualdade. Nesta geração “batalhar” não significa trabalhar hoje para colher daqui a trinta anos. As gerações anteriores tiveram que lutar por décadas a fio para conquistar o que queriam. Esta geração já chagou dando um totó em quem estava na frente. Usando all-star! Pode até rasgar seu RG, ele não é mais documento. Sobrenome e sexo já deixaram de ser há tempos, e agora data de nascimento vai pelo mesmo caminho.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Noite

Ao passar pela porta de entrada o som da chuva lá fora é abafado pelo barulho da multidão. O cheiro dos corpos em movimento atinge Melissa, mas ela já não se preocupa com isso. Qualquer outra pessoa se perguntaria o que estaria fazendo ali, mas Melissa nunca ocupa sua cabeça pensando em onde deveria estar. Para ela, na maior parte do tempo, o que acontece ao redor não desperta tanto interesse quanto aquilo que está da pele para dentro. Certamente psiquiatras têm teorias com nomes impronunciáveis para definir isso, mas os psiquiatras com seus termos fazem parte do mundo de fora, e junto com todo o resto, para Melissa, são irrelevantes.  

Melissa sente-se invisível. Não por crise de auto-estima ou por não se considerar importante. Ao contrário. Essas pessoas todas não lhe são importantes e se ela entra num salão cheio e não enxerga ninguém, então também ninguém a enxerga.

Da pele para dentro tem sempre muita coisa acontecendo. Tanto e tão rápido que às vezes Melissa gostaria que parasse. De tudo que acontece do lado de fora algumas coisas a tocam com mais intensidade. A música, nestas ocasiões, é a primeira. Tem um grande poder de penetrar aquela espessa camada de isolamento. E também, algumas vezes, principalmente nos momentos mais inesperados, um olhar. Um olhar que é como um ímã, uma poderosa troca de energia, e Melissa sente toda sua consciência se realocando. É neste momento que toda sua atenção deixa de estar da pele para dentro e passa a estar, simplesmente, na pele. Melissa se recorda do quanto o mundo lá fora pode ser interessante ocasionalmente, e que pode valer a pena. Aos poucos se percebe visível novamente.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Antigamente...

As janelas trancadas já não intimidavam o pequeno João. Já foi precavido e levou seus instrumentos de abrir fechaduras e travas, que ele mesmo construiu. Já tantas vezes abriu portas e janelas trancadas que se tornou habilidoso. Habilidade e instrumentos simples eram tudo que precisava, já que não estamos falando da Curitiba de hoje, mas a de antigamente, seja lá o que isso significa.
Lá estava ele novamente, entrando em uma casa desconhecida. Já não pode mais freqüentar as casas de sempre, para não levantar suspeitas. Tinha um objetivo simples: entrar, procurar dinheiro e objetos de valor que sempre estavam nos quartos e sair antes que alguém reparasse. Até algumas semanas João desfrutava da adrenalina que corria por suas veias ao fazê-lo. Era como um jogo. Conseguir o prêmio sem ser visto e fugir, tudo criativamente dramatizado. E naquela época não existiam nem mesmo os jogos de computador para culpar de má influência.
Porém naquele dia João não estava tão empolgado com a façanha. Isto porque ouviu algumas coisas de seus colegas na escola que o deixaram inquieto. Começou mesmo a se perguntar sobre as pessoas que moravam naquela casa. Quem eram? Como viviam? Ele nunca tinha pensado sobre isso porque tinha o costume de entrar em casas estranhas desde que podia se lembrar. Seus colegas da escola certamente o julgariam, mas o que eles sabiam? Tinham seus pais trabalhando e ganhando o sustento da família, permitindo que suas mães cuidassem tranquilamente de seus irmãos. Mas João perdeu o pai quando ainda era muito pequeno e sua mãe tinha que trabalhar. Ele ajudava a família desta forma, usando sua grande habilidade.
Sem perceber o tempo que perdera pensando em tais problemas, João ouviu um barulho de uma pessoa no aposento ao lado. Estivera tão imerso em suas reflexões que demorou alguns segundos para recordar-se de como tinha feito para entrar e como poderia sair. No meio do caminho derrubou um vaso que estava em cima de uma mesa e fez tanto barulho que um homem saiu da cozinha gritando e mexendo numa arma que era obviamente muito complexa para ser usada em um momento de tanta tensão. João conseguiu escapar e correu sem rumo pelas ruas curitibanas pouco movimentadas. Quando já atingiu uma distância de razoável segurança começou a se preocupar, não com a possibilidade de ter sido reconhecido, mas com a próxima casa que iria conseguir entrar, já que sabia a tristeza que era voltar à sua família de mãos abanando.