terça-feira, 20 de dezembro de 2011

O mundo mágico dos livros

               Todos os anos a pequena Juliana era forçada a ler alguns livros para trabalhos e provas na escola. O famoso “livro do bimestre” era muito conhecido e odiado pelos alunos. Para todos os alunos da sexta série os livros eram mais um pedaço de matéria escolar que pouco ou nada se relacionava com o mundo em que viviam. E geralmente os livros eram abertos um dia antes da prova e apenas suas páginas iniciais eram lidas. Como pode alguém ter a paciência para ler um livro até o fim? São tantas páginas! No início daquele esperado ano 2000 foi distribuído o primeiro livro do bimestre. “Jardim Secreto”. É claro que tudo que é secreto é sedutor, mas foi principalmente a capa do livro que chamou atenção da pequena Juliana. Semanas antes da prova (pela primeira vez), Juliana resolveu matar a curiosidade e começou a ler o livro. As primeiras páginas aumentaram sua curiosidade, e por isso resolveu continuar a leitura. Aos poucos todo o mundo a sua volta deixou de existir. Não havia nada além dela e do livro. As páginas começaram a virar sozinhas e aos poucos nem elas mais existiam. Nem capa, nem papel, nem letras. Nem mesmo Juliana. Nada existia além daqueles personagens e daquela aventura. Foi só na última página que Juliana se lembrou de quem era e onde estava, e ficou triste por ter acabado tão rápido.

               Alguns dias depois sua mãe a levou a uma livraria, para incentivar seu novo entusiasmo pela leitura. Aquele lugar era mágico. A porta da livraria não era uma porta, mas uma janela, que permitia que Juliana voasse para qualquer lugar no universo. E a garotinha já não se sentia pequena, pois sabia que ali poderia ser do tamanho que quisesse, poderia ser quem ou o que quisesse. Um infinito de possibilidades abria-se a sua frente. Eram tantas e tão deliciosas opções que Juliana sentia-se até um pouco confusa. Por onde começar? Decidiu que passaria toda sua vida explorando aquele universo, conhecendo mundos e realidades das mais diversas.

               Mas naquele momento, no meio de tantas possibilidades um garotinho chamou-lhe atenção. Eles tinham a mesma idade, e também o garoto passava por uma experiência semelhante. Também ele estava descobrindo um mundo mágico cheio de possibilidades. Também ele estava se descobrindo. E foi assim que começaram uma amizade que duraria toda as suas vidas.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Melissa!

Muito tempo foi gasto na frente do espelho na produção de uma imagem que fizesse com que Melissa se sentisse segura. Ela não perde tempo com revistas de moda, não sabe quais as grifes do momento, não fica por aí perguntando para as pessoas se acham que ela está bonita. Melissa segue o que ela mesma chama de “padrão de beleza segundo Melissa” e quem não gostar que arrume outra coisa pra fazer.    

Mas dessa vez Melissa saiu de casa com uma vontade incrível de paquerar. A paquera tem algo magicamente fascinante. Você conhece uma pessoa, vê e conversa pela primeira vez, e tem o poder de fantasiar as coisas mais inusitadas, engraçadas, bonitas, simpáticas sobre esta pessoa. Não precisa se preocupar com defeitos, imperfeições. Não precisa ficar chateado com o que foi falado no último encontro, nem nada das complicações de um relacionamento afetivo. Você pode construir internamente toda uma imagem, da forma que quiser. Melissa sempre aproveita imensamente a paquera, pois sabe que a qualquer momento tudo pode ser desconstruído pela tediosa realidade.

Depois de algumas horas na balada, já cansada e com dor nos pés, Melissa estava um tanto frustrada por não ter ainda encontrado uma boa paquera. Repentinamente teve um momento de clareza. Como é patético uma garota ficar toda produzida e empinada à espera de um garoto que se aproxime para paquerar. Você sempre está na esperança de encontrar um príncipe e acaba beijando sapo. A vida é muito curta para ser perdida com protocolos. Melissa percebeu que tinha duas opções, ou ficava ali, esperando a boa vontade de um rapaz, esperando ser escolhida provavelmente por alguém não tão atraente, ou deixava de ser passiva, de forma que teria o poder de escolher alguém que realmente valesse a pena.

Depois de algumas horas, que talvez tenham sido minutos, tomando coragem, Melissa atravessou a pista para conversar com o garoto mais bonito que viu naquela noite. Ele era alto, com cabelos escuros, olhos castanho claro e barba mal feita. Muito simpático. A conversa durou horas. O desenrolar da paquera será propositalmente não narrado para que você possa usar sua imaginação como bem entender. Só posso dizer que Melissa, naquela noite, encontrou a paquera perfeita, até que foi estragada pela dura e cruel realidade.

domingo, 23 de outubro de 2011

Geração Mark Zuckerberg

De um lado da mesa dois homens. Ambos preenchem exatamente os requisitos de homens de negócio bem sucedidos. Cerca de 50 anos de idade, terno, linguagem formal. Do outro lado da mesa uma mulher. Ou talvez você prefira chamá-la de garota. Vinte-e-poucos anos, all-star, gírias. A conversa começa com “Eu gostaria de ouvir um pouco sobre sua experiência...”. Logo de cara você vai deduzir que a garota vai se sentir um peixe fora d’água, que está fazendo uma entrevista para conseguir seu primeiro emprego, talvez até chegue ao ponto de considerá-la ingênua por sua aparência. Se você pensou nisto sugiro continuar a leitura e digitar o nome desta história num site chamado Google.

A “garota” em questão não está sentada em uma cadeira qualquer, está sentada em cima de um patrimônio com muitos zeros à direita. Os dois homens estão se perguntando quem realmente é o peixe fora d’água. Certamente as horas que passaram na frente do espelho foram perdidas e a preocupação com cada detalhe da sua aparência não vão impressionar. Ela começou a conversa pedindo para saber um pouco da experiência dos homens que estão a sua frente, que se candidataram a um trabalho de consultoria.

Na geração dos avós da garota em questão haviam muitos obstáculos a serem transpostos. Tecnologia, invenções, impostos, ditadura. O mundo era governado por homens de meia idade engravatados e se você não era filho de um deputado, juiz ou coronel as oportunidades eram poucas. Na geração de seus pais as mulheres batalhavam por um lugar, por igualdade. Nesta geração “batalhar” não significa trabalhar hoje para colher daqui a trinta anos. As gerações anteriores tiveram que lutar por décadas a fio para conquistar o que queriam. Esta geração já chagou dando um totó em quem estava na frente. Usando all-star! Pode até rasgar seu RG, ele não é mais documento. Sobrenome e sexo já deixaram de ser há tempos, e agora data de nascimento vai pelo mesmo caminho.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Noite

Ao passar pela porta de entrada o som da chuva lá fora é abafado pelo barulho da multidão. O cheiro dos corpos em movimento atinge Melissa, mas ela já não se preocupa com isso. Qualquer outra pessoa se perguntaria o que estaria fazendo ali, mas Melissa nunca ocupa sua cabeça pensando em onde deveria estar. Para ela, na maior parte do tempo, o que acontece ao redor não desperta tanto interesse quanto aquilo que está da pele para dentro. Certamente psiquiatras têm teorias com nomes impronunciáveis para definir isso, mas os psiquiatras com seus termos fazem parte do mundo de fora, e junto com todo o resto, para Melissa, são irrelevantes.  

Melissa sente-se invisível. Não por crise de auto-estima ou por não se considerar importante. Ao contrário. Essas pessoas todas não lhe são importantes e se ela entra num salão cheio e não enxerga ninguém, então também ninguém a enxerga.

Da pele para dentro tem sempre muita coisa acontecendo. Tanto e tão rápido que às vezes Melissa gostaria que parasse. De tudo que acontece do lado de fora algumas coisas a tocam com mais intensidade. A música, nestas ocasiões, é a primeira. Tem um grande poder de penetrar aquela espessa camada de isolamento. E também, algumas vezes, principalmente nos momentos mais inesperados, um olhar. Um olhar que é como um ímã, uma poderosa troca de energia, e Melissa sente toda sua consciência se realocando. É neste momento que toda sua atenção deixa de estar da pele para dentro e passa a estar, simplesmente, na pele. Melissa se recorda do quanto o mundo lá fora pode ser interessante ocasionalmente, e que pode valer a pena. Aos poucos se percebe visível novamente.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Antigamente...

As janelas trancadas já não intimidavam o pequeno João. Já foi precavido e levou seus instrumentos de abrir fechaduras e travas, que ele mesmo construiu. Já tantas vezes abriu portas e janelas trancadas que se tornou habilidoso. Habilidade e instrumentos simples eram tudo que precisava, já que não estamos falando da Curitiba de hoje, mas a de antigamente, seja lá o que isso significa.
Lá estava ele novamente, entrando em uma casa desconhecida. Já não pode mais freqüentar as casas de sempre, para não levantar suspeitas. Tinha um objetivo simples: entrar, procurar dinheiro e objetos de valor que sempre estavam nos quartos e sair antes que alguém reparasse. Até algumas semanas João desfrutava da adrenalina que corria por suas veias ao fazê-lo. Era como um jogo. Conseguir o prêmio sem ser visto e fugir, tudo criativamente dramatizado. E naquela época não existiam nem mesmo os jogos de computador para culpar de má influência.
Porém naquele dia João não estava tão empolgado com a façanha. Isto porque ouviu algumas coisas de seus colegas na escola que o deixaram inquieto. Começou mesmo a se perguntar sobre as pessoas que moravam naquela casa. Quem eram? Como viviam? Ele nunca tinha pensado sobre isso porque tinha o costume de entrar em casas estranhas desde que podia se lembrar. Seus colegas da escola certamente o julgariam, mas o que eles sabiam? Tinham seus pais trabalhando e ganhando o sustento da família, permitindo que suas mães cuidassem tranquilamente de seus irmãos. Mas João perdeu o pai quando ainda era muito pequeno e sua mãe tinha que trabalhar. Ele ajudava a família desta forma, usando sua grande habilidade.
Sem perceber o tempo que perdera pensando em tais problemas, João ouviu um barulho de uma pessoa no aposento ao lado. Estivera tão imerso em suas reflexões que demorou alguns segundos para recordar-se de como tinha feito para entrar e como poderia sair. No meio do caminho derrubou um vaso que estava em cima de uma mesa e fez tanto barulho que um homem saiu da cozinha gritando e mexendo numa arma que era obviamente muito complexa para ser usada em um momento de tanta tensão. João conseguiu escapar e correu sem rumo pelas ruas curitibanas pouco movimentadas. Quando já atingiu uma distância de razoável segurança começou a se preocupar, não com a possibilidade de ter sido reconhecido, mas com a próxima casa que iria conseguir entrar, já que sabia a tristeza que era voltar à sua família de mãos abanando.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Corra!

Três universitários semi-playboys resolvem aproveitar seu verão intensamente desbravando o continente sul americano. E como todo estudante de universidade pública, acham que conseguem absorver toda a cultura de um país em poucos dias, mal percebendo que apesar da proximidade geográfica há uma distância cultural gigantesca entre Brasil e Bolívia. Roupas, língua, costume, tratamento, higiene. É quase um mundo novo. Mas estes brasileiros não dão o braço a torcer, e ficam sustentando a pose “estudo na federal e compreendo o mundo” que todos estamos acostumados a ver.

Como a grana que o papai mandou é curta todo o trajeto é feito por vias terrestres. Para você que está acostumado a reclamar da malha rodoviária do Brasil, imagine a ausência dela. Lá estavam os três estudantes em um ônibus sem banheiro, sem ar condicionado, sem poltronas reclináveis e sem vergonha em mais um trajeto de cerca de 20 horas. Depois de apenas algumas horinhas foi feita a primeira das poucas paradas, no meio da floresta amazônica.

O público do ônibus era bastante variado, mas podia ser dividido em dois claros e distintos grupos: os bolivianos e os perdidos com cara de bobos com a palavra “gringo” piscando na testa. Ao descer do ônibus todos entraram no único estabelecimento a procura de banheiro e comida. Os brasileiros já perderam o ar de malandragem assim que repararam que a única comida disponível era uma macarronada servida especialmente à mão por um chola do tamanho da soma deles três. Por alguns minutos os viajantes ficaram indecisos entre matar a fome junto com o orgulho ou pedir pra sair. Acabaram sentando para comer seu banquete, enquanto davam risada da situação. Estavam nas primeiras garfadas quando ouviram o motor do ônibus dando a partida, mas, revestidos de sua razão, continuaram comendo com a certeza de que o motorista os esperaria. Doce engano. O ônibus arrancou e começou a partir, os três largaram seus garfos e sua arrogância, agarraram seus pertences e saíram correndo, comendo pó pela estrada de chão, atrás do ônibus, que não parou nem mesmo para seus gritos desesperados. O primeiro brasileiro alcançou o ônibus a tempo de pular para dentro do o veículo ainda em movimento, e o parar para ou outros que vinham depois. Final feliz para que pudessem continuar sua aventura e contar posteriormente a história em seus blogs.

domingo, 25 de setembro de 2011

(des)encontro

“Mas peixe não é carne!”
Essa guria deve ter algum problema cognitivo. Eu pergunto se ela gosta de peixe e ela diz que não come carne. Todo mundo sabe que uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. E ela vem com essa. Eu realmente fiquei preocupado ontem quando a conheci, sabia que em algum momento ela iria mostrar um defeito. Se ela já sai falando isso no primeiro encontro imagina o que não vem depois...
“Mas por quê?”
Pra chamar atenção, claro. Deve ter algum problema de infância com o papai e quer ser rebelde. Tava bom demais pra ser verdade. E eu ainda reservei um restaurante de frutos do mar caríssimo pra essa noite, querendo impressionar, achando que ela era normal. Grande engano. Julguei pelas aparências.
“Mas então o que você come?”
Alface. Com certeza ela só come alface em público e depois vai comer uma picanha mal passada escondida. É impossível não comer carne, ela não estaria assim tão bonita e saudável se não comesse carne há tanto tempo. Todas as pessoas que eu conheço que são vegetarianas são depressivas. Agora não me lembro de nenhuma em específico, mas lembro que são depressivas. Esse sorrisinho dela é só fachada, certeza.
“Você está sendo acompanhada por um nutricionista?”
Tá querendo desafiar as leis na natureza. Minha mãe dizia bem claro: ‘Filho, se não comer a carne não tem sobremesa’. Sem carne uma pessoa não sobrevive, fica com anemia. Daqui a pouco ela vai decidir parar de respirar também? Só o que falta.
“É impossível cozinhar algo descente sem carne.”
Até tem aquele risoto de tomate seco que eu gosto, mas não dá pra viver só de risoto! No meu curso de chef eu não aprendi nenhum prato sem carne. E eu que achava que iria conquistá-la fazendo um jantar... Grande engano. Eu me irrito com essas pessoas que querem ser diferentes.
“Mas uma coisa é fato. O ser humano só evoluiu a mente por comer carnes. Isso não tem discussão!”
...
“Ei gatinha? Por que você ficou em silêncio agora?”

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Dedico a você que sabe que esta não é uma história nada original...

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Mais um Assalto

Terça-feira ensolarada na cidade grande. Uma garota saltitante caminha por um bairro-quase-nobre aproveitando o sol e pensando não na morte da bezerra, mas na possível tradução da prosa simbolista brasileira do início do século XX para o inglês. Por não se tratar de um assunto que se resolve em poucas quadras, a garota não percebe um cara estranho que se aproxima. É anunciado o assalto e a existência de uma arma que não dá o ar da graça em nenhum momento. A garota tem um momento inédito. Por algum tempo, não se sabe exatamente quanto, sua cabeça fica vazia. Não há nenhum pensamento. Não pensa em correr, chorar, gritar. Não pensa nem em dar o dinheiro e acabar logo com aquilo. Vazio.  Alguma coisa entre um transe e o estado de meditação. Até o assaltante fica irritado com a falta de qualquer reação: “Vamo guria!” e mexe no bolso onde está a suposta arma. Recuperando os sentidos a jovem abre a bolsa e dá o dinheiro que tem na carteira. O assaltante pega o dinheiro e sai, sem nenhuma pressa ou constrangimento, caminhando na direção oposta.

Neste momento a garota toma consciência do que acabou de acontecer e finalmente entra em desespero. Não pelo dinheiro perdido, que não foi muito, mas pelo medo concretizado da “falta de segurança pública” de todo pequeno-burguês neste país. Até este momento você deve estar pensando, grande coisa, isso acontece todo dia em toda a esquina. Mas o que acontece em seguida é que faz a leitura valer a pena.

Em prantos a garota sai andando, tomada por suas emoções, até um posto policial próximo. Mal conseguindo falar entre um soluço e outro ela conta aos policiais toda a história. Eles perguntam a roupa que vestia o vilão. Ela consegue resgatar dos registros daquele momento que sua cabeça pouco percebeu seu entorno. Jaqueta jeans e calça preta. Imediatamente dois policiais sobem em motos e saem na direção do assalto. Chegam à esquina de uma grande avenida e vêem o sujeito, que, de forma nada esperta, começa a correr assim que vê a polícia. Agora imagine a cena: um malandro correndo e dois policiais de motos que sobem na calçada perseguindo-o. O ladrão percebe que está em desvantagem e sai da calçada, passando a correr entre os carros que estão parados presos no transito. Derruba um senhor que veste um terno barato e carrega uma maleta. Este ao entender a situação agarra sua maleta e sai correndo atrás do ladrão para ajudar a polícia. Finalmente, no meio da avenida um dos motoristas agilmente abre a porta no exato momento em que o ladrão passava ao lado de seu carro, fazendo-o perder os sentidos e salvando o dia. Agora para nosso vilão só há um destino. Xilindró. 

domingo, 18 de setembro de 2011

Uma aventura em terras gringas

Quantas histórias têm guardada uma casa de 100 anos?    Quantas famílias, conversas, encontros e desencontros ela já presenciou? E agora está também impregnada com as minhas histórias. Escadas, sala, cozinha, móveis – ou a ausência deles, em todas as partes posso lembrar-me de muitos momentos, muitas pessoas. Fico feliz por estas paredes guardarem silêncio. Não que eu não tenha sido feliz aqui, mas algumas histórias devem ser guardadas com carinho.

E agora a história final. Partir. E não sem dificuldades. Partir para mim nunca é tão difícil. Já me acostumei a ir de um lugar para outro e me despedir. Já aprendi a desapegar do apego. Mas não é dessa dificuldade que estou falando. Acontece que esta casa foi alugada sem nenhuma formalidade. A proprietária é uma muito simpática mulher, que esteve sempre disponível para qualquer ocasião, principalmente cobrar o aluguel. Não foi feito contrato ou nada parecido. Eu mesma nunca fui muito adepta a burocracias. Na chegada foi feito um depósito caução, para o caso de algum estrago. Agora a simpática e disponível senhora sumiu com meu dinheiro. E para piorar tudo não estou em meu aconchegante país, mas num gringo hostil, onde tenho pouco ou nenhum direito civil.

Ela usa as armas dela e eu as minhas. Já que email e telefones não funcionam e eu não sei onde ela mora, apelo as mais incríveis e poderosas armas. Em primeiro lugar aquela que os mais impiedosos não hesitam em usar: Google. E não é que encontrei o endereço? A próxima arma já é um pouco mais rara, mas neste momento disponível: GPS.

Chegando à casa da criatura – e a esta altura já nem lembro de toda a simpatia – e depois de vencer os dois enormes e raivosos cães, ela aparece à porta com um sorriso. Convida-me a entrar muito gentilmente, como se eu fosse esperada. Eu sento no sofá e ela numa poltrona – quase um trono – e ao nosso lado Cindy, sua amiga e expectadora da linda cena que viria a desabrochar. Muito polida ela faz todo o discurso de como tentou entrar em contato. Eu ainda mais polida e sorridente falo que realmente deve ter acontecido uma série de desencontros, já que meu celular não registrou chamadas, não recebi emails e ela não me visitou desde que paguei a última parcela do aluguel. Foi uma incrível dança de polidas alfinetadas, tudo belamente encenado graças a nossa expectadora. Depois de contar sobre minha volta a meu país, meus planos de futuro e mais um saco de ladainhas, parti vitoriosa com meu cheque. 

sábado, 17 de setembro de 2011

Monstro

Li em algum lugar que a percepção do tempo – dividida em passado, presente e futuro – faz parte da condição humana. Quem escreveu isso não tinha uma rotina. A rotina faz com que os dias sejam tão parecidos que você já não sabe bem distingui-los uns dos outros, não sabe bem se um determinado fato aconteceu mês passado, ontem, hoje ou se foi só algo que você imaginou. Meu trabalho é minha rotina. Trabalho com o tempo. Ora, se o tempo é meu objeto de trabalho, e este me leva a uma rotina, que por sua vez é uma distorção da percepção do tempo, então já nem sei mais como concluir este raciocínio. Este é um dos problemas de se dedicar a vida a uma tarefa puramente teórica e especulativa. E eu que me preocupava com a sanidade dos meus professores...

Vamos começar novamente. Apesar de ter muito prazer em minha profissão estou sempre em busca de formas novas de quebrar a rotina. Viu? Não foi tão difícil começar de forma simples, sem muita viagem! Recentemente dei a meus alunos a tarefa de construir uma maquete, de acordo com a matéria que está sendo estudada. Isto os estimula a criatividade, faz com que aprendam o conteúdo de forma mais prazerosa e me faz sair da tão temida “zona de conforto” – que é o nome da moda para a nossa boa e velha: ROTINA. No caso do 7º ano o conteúdo são as Grandes Navegações. Fácil! Sentei com meus queridos alunos para termos idéias e distribuirmos as tarefas. Navios de papel, oceano de gel, as Pollys serão as pessoas, tragam os materiais na sexta. Crianças são muito criativas, mas é sempre preciso dar um empurrãozinho. Eu expliquei que seria interessante e divertido se fizéssemos um monstro marinho, já que as pessoas naquela época desconheciam suas limitações de conhecimento e acreditavam que existiam grandes monstros no oceano. Se tivéssemos um monstro em nossa maquete poderíamos ilustrar isto. Sexta-feira todos animados com suas idéias e materiais começamos a fazer a tal maquete e quando percebi lá estava o mostro em nosso oceano: Shrek.